lunes, 13 de enero de 2014

POLUIÇÃO DO RIO SANTA LUCÍA: AINDA SEM RESPONSÁVEIS

POLUIÇÃO DAS ÁGUAS POTÁVEIS DO URUGUAI. A DEZ ANOS DE UMA SENTENÇA QUE PÔS DE MANIFESTO O PROBLEMA, AINDA UMA REALIDADE PREOCUPANTE SEM RESPONSÁVEIS

Dr. Edgardo Ettlin


ÍNDICE: I. Introdução; II. O Caso (Sentença do 17 de Julho de 2003 do Juizado Letrado de Canelones de 2º Turno): a) Os fatos; b) Resultados e Valoração da Prova; c) Atuação do Ministério Público; d) A sentença; III. Comentário.



I. Introdução

Tomou estado de alarme público neste ano 2013 a contaminação do Rio Santa Lucía (que abastece de água potável à cidade de Montevideo -capital do Uruguai- e a sua área conurbana, mais do 50 % do Uruguai) e particularmente a alta poluição verificada no Arroio Canelón Chico, um dos principais afluentes do Rio Santa Lucía. Essa região é adjacente ao área “Humedales (“Wetlands”) do Santa Lucía” que será incorporada ao Sistema Nacional de Áreas Protegidas (Lei No. 17.283 e Decreto regulamentar Não. 349/005), e nela ainda habitam ao menos 10 espécies de anfíbios, 70 de árvores nativas e 123 de aves (o 30% das espécies de aves nativas do país) (1 ).

Dez anos antes, uma decisão judicial (sentença do Juizado Letrado de Primeira Instância de Canelones de 2º Turno, que não foi apelada e entrou em autoridade de coisa julgada) tinha denunciado esta situação mas ninguém se fez eco da gravidade da situação. Atualmente todos estão se dando conta que isto é um problema, embora ninguém se lembra deste antecedente que já o assinalava, e que aliás estava avalizado por relatórios periciais e científicos que estão no expediente.

No Uruguai a proteção judicial do meio ambiente ou da natureza não está desenvolvida e a maioria dos litígios são juízos de responsabilidade civil por danos e prejuízos por contaminação ambiental. As ações que alguma Promotoria do Ministério Público tentam em proteção dos interesses coletivos ambientais fracassam usualmente por suas omissões probatórias. Apesar de que não há impedimento para a participação judicial da sociedade civil e dos grupos que representam interesses difusos nestes temas, não existem ainda no nosso país antecedentes importantes de demandas promovidas por estes grupos em matéria de meio ambiente.


II. O Caso (Sentença do 17 de Julho de 2003 do Juizado Letrado de Canelones de 2º Turno)

a) Os fatos

Um produtor rural proprietário de un estabelecimento agropecuário demandou ao Frigorífico Canelones, a ALUR S.A. (fabricante de arames e cabos elétricos) e à Administração das Obras Sanitárias do Estado (O.S.E.) por danos e prejuízos por responsabilidade ambiental. O campo do ator (demandante) era atravessado pelo Arroio Canelón Chico, que apresentava um péssimo estado sanitário por efluentes contaminantes dos demandados, com presença de bacilos coliformes fora das condições regulamentares, determinando uma água de Cor Negra e cheiro nauseante. Aparte o curso tinha chumbo e quantidades anormais de zinco e cobre. Queixava-se o demandante que a contaminação do ribeiro tinha comprometido seu investimento (perdas em animais, e em rendimentos de leitaria e agricultura, e que não poderia usar as águas para rego) e que lhe tinha obrigado a fazer obras para evitar que o gado não bebesse as águas do arroio e não morresse. Reclamava-se uns U$S 219.795 por danos patrimoniais e morais.

O Frigorífico, a fábrica de arames e cabos, e o Ente público encarregado da distribuição de águas O.S.E. negaram as imputações da demanda, e alegaram que devia provar-se que os prejuízos invocados tinham relação direta com a atividade contaminante do ribeiro que a eles se queria imputar, negando que vertessem contaminantes em níveis não permitidos. Também afirmavam que haviam várias empresas e sujeitos que contaminavam e enviavam refugos ao arroio, em forma pública ou clandestina. Expressaram que o ator (demandante) contaminava o curso da água também com sua atividade de gado e agrícola, e com o uso de pesticidas e fertilizantes. Também propuseram a exceção de prescrição de quatro años da ação, porque a suposta atividade de contaminação que se recriminava vinha desde o passado e desde fazia muitos anos.


b) Resultados e Valoração da Prova

Foi demonstrado (avalizado por prova pericial e relatórios técnicos ao respecto) que tanto a O.S.E. (Ente encarregado do água potável; ou seja o próprio Estado) quanto o Frigorífico Canelones (particular), enviavam efluentes ao arroio Canelón Chico em quantidades de coliformes fecais com valores não aceitáveis conforme aos parâmetros do Decreto do Poder Executivo No. 253/979 (arts. 3º e 5º) na redação dada pelos arts. 1º. e 4º do Decreto No. 579/989 e o art. 2º do Decreto No. 195/991). As suas instalações para o tratamento das águas residuais não eram as suficientes nem possuíam as condições necessárias para a purificação das Águas em mau estado. No caso de ALUR S.A., a sua contaminação por vertido de resíduos inorgânicos principalmente Chumbo estava em valores aceitáveis ou toleráveis para consumo de gado, mas não era adequada para padrões dos humanos e não seria a água apta para o rego. Também se demonstrou que o reclamante era também um contaminador, dizendo a prova pericial que “A contaminação contribuída ao curso do ribeiro por cada um dos envolvidos é muito importante, sendo maior a de estabelecimento do Sr. C... [ator ou demandante]. Do estabelecimento do Sr. C… saem águas tão contaminadas como as que ingressam”. Provou-se ademais que existiam outros agentes, sujeitos particulares, empresas e estabelecimentos industriais, de gado e agrícolas, que arrojavam refugos tóxicos orgânicos e inorgânicos (não individualizados em sua totalidade porque alguns eram clandestinos) ao arroio Canelón Chico, ainda que não foram demandados e portanto não intervieram nem foram envolvidos no processo de responsabilidade civil.

Conquanto se tratava de um litígio de responsabilidade civil (privado), a raiz deste caso o Ministério Público pela Promotoria Letrada de Canelones tomou intervenção de ofício por requerimento do Juizado atuante. Para não estorvar o trâmite do juízo de ação por danos e prejuízos, separou-se desse litígio uma investigação (que teria um alcance mais amplo e geral) através de um expediente derivado de recolha de provas e de medidas cautelares em instância preparatória civil (No. 109/2001/C de Canelones 2º Turno).


d) A sentença

A sentença rejeitou a demanda de responsabilidade civil porque entendeu que o demandante era um poluente do ribeiro Canelón Chico e portanto não tinha legitimação para reclamar nada ao respeito de isso, além de que embora estava provada a atividade contaminante dos demandados no arroio, a perícia não determinou qual era a incidência sobre a propriedade do reclamante (quem vertia em sua zona maiores contaminantes do que os outros). De qualquer jeito, a decisão judicial recomendou à Administração das Obras Sanitárias do Estado (O.S.E.), ALUR S.A. e ao Frigorífico Canelones a que tomassem medidas para reduzir ou abater os níveis de contaminação a padrões admitidos.


III. Comentário

Ao dia 17 de julho de 2003 quando se ditou a decisão em estudo, já existia a Declaração de Rio de Janeiro sobre Médio Ambiente e Desenvolvimento, de junho de 1992. A mesma não foi considerada no texto da sentença ainda que se aplicou outras normas convergentes com certas limitações. No caso, não está discutido que o incoante teve pleno acesso aos mecanismos de justiça, conforme aos Princípios 10 “in fine” e 13 da Declaração de Rio além dos princípios de acesso à Justiça da Declaração de Buenos Aires sobre Participação dos Juízes Ibero-americanos relativa à Informação, a Participação Pública e o Acesso à Justiça em Matéria de Médio Ambiente de 2012. A Jurisprudência uruguaia não legitima ao particular para a reclamação dos interesses por danos difusos ao Médio Ambiente, mais lhe permite reclamar civilmente pelos seus danos individuais sofridos e para que se tomem medidas evitando mais danos futuros, porque a contaminação ambiental é um ato lesivo e ilícito que legitima à ação civil, e desde sempre foi imputador de responsabilidade (arts. 47 da Constituição da República, 1319 e 1324 do Código Civil, 4º da Lei No. 16.466, 3º da Lei No. 17.283; 163 do Código de Águas, art. 11 do Protocolo de San Salvador sobre Direitos Humanos Econômicos Sociais e Culturais, ratificado por Lei uruguaia No. 16.519).

Entendeu-se que a ação por danos e prejuízos em matéria de contaminação ambiental não prescreve (2), porque a atividade de Contaminação é um processo sistemático, acumulativo e é de caráter contínuo, pelo que não o faz determinável desde um “dies a quo” com certidão e não se esgota num ato pontual, prolongando-se a ação poluente no tempo.

No caso se provou que não sómente as indústrias particulares demandadas (além de outros agentes que não participaram no processo) contaminavam, senão que o próprio Ente Estatal que devia e deve cuidar as águas (o acesso ao água potável e ao saneamento é um direito fundamental no Uruguai; art. 47 de nossa Constituição), era um principal agente contaminante do arroio Canelón Chico porque ali verte as águas servidas da cidade sem maior tratamento. Conquanto O.S.E., o Frigorífico Canelones e ALUR S.A. possuíam certas instalações feitas para tratamento de águas residuais, não eram as suficientes nem possuíam as condições necessárias para a purificação das águas em mau estado.

Sem prejuízo de que estava provada a atividade ilícita das empresas privadas e do ente estatal como graves contaminadores da água (de um ribeiro afluente do rio de onde se surte a população da Capital e conurbana de água potável), entendeu-se que devia rejeitar-se a demanda do particular: a) porque não estava provada a gravidade ou incidência pontual desta contaminação dos codemandados (existiam outros agentes envolvidos como participantes neste processo de contaminação que não foram emplazados nem detectados, e os níveis de contaminação variavam segundo lugares) sobre o curso de água que passava pelo campo do reclamante; b) porque o próprio incoante era um grande contaminador do arroio desde o seu campo (tirava às suas águas resíduos de leiteria e matérias fecais de gado, pesticidas e plaguicidas) e isso era um fato próprio que provocava danos em seu próprio campo aparte de danos no ribeiro, no ponto que a sentença qualificou ao demandante como “depredador”. A perícia evidenciou que todos os envolvidos contaminavam, mas a contaminação que provocava o ator era maior pelos níveis de valores que arrojava e porque nem sequer tinha tratamento de seus resíduos. “Do Relatório surge que C… joga igual ou mais quantidade de águas contaminadas do que aqueles a quem demanda”; “…quem reclama é também um poluente do ribeiro Canelón Chico… E pretende neste juízo uma intervenção da Justiça, querendo esquecer o seu papel como agente contaminante do curso de água mencionado”; “Antes de reclamar direitos e responsabilidades alheias, primeiro deve cumprir-se os próprios deveres e obrigações”. O fato da vítima, a sua atividade poluidora, selou fatalmente o destino de sua demanda. Citando a JOSSERAND a sentença estabelece que a atitude de incumpridor de quem pretende fazer que os demais cumpram, enerva a própria pretensão (3). Esta conduta gravitou na rejeição de sua pretensão, no ponto que a sentença citando a SAMANIEGO, diz-lhe:
"No consta que te falte nada, lobo;
y tú, raposa, tú tienes el robo".

A Justiça recomendou (não ordenou) ao Estado e às empresas demandadas a que cessassem os atos de poluição das águas do arroio, mas como não estava imposta nenhuma sanção ou astrição (não havia nenhuma obrigação senão uma simples recomendação), não existiu uma instância de revisão, de execução ou de avaliação sobre como se cumpriu. Embora que julgava-se num processo privado, a Justiça tinha provocado a intervenção ao Ministério Público justificando a necessidade dessa participação porque “quando a Magistratura toma conhecimento da existência de uma atividade que lesa valores ou bens como sem dúvida o é o Médio Ambiente, que afeta aparte aos Interesses Difusos, deve comunicá-lo de imediato…” e porque a contaminação das águas é um comportamento que não só dana a particulares senão que lesa a valores e bens da Comunidade Geral. E ninguém mais competente para atuar em defesa e na representação dos interesses públicos meio ambientais e da natureza que no caso pudessem estar envolvidos como o Ministério Público. “Dita atuação está justificada pela intervenção que lhe dá o ordenamento jurídico…”. No Uruguai a gestão sustentável e solidária com as gerações futuras dos recursos hídricos constitui um assunto de interesse geral, e os usuários e a sociedade civil devem participar em todas as instâncias (art. 47 lit. “b” da Constituição nacional). No caso a Justiça provocou a participação destes interesses envolvendo ao Ministério Público como representante legitimado para defender os interesses da sociedade civil que podiam estar em jogo no caso (no Uruguai, art. 42 do Código Geral do Processo e art. 3º do Decreto-Lei Não. 15.365), o que em nosso entender se encontra dentro do Princípio 10 da Declaração de Rio, do Princípio de Participação Pública em matéria de médio ambiente da Declaração de Buenos Aires, e o art. IV.33 da Declaração de Quito a respeito da Exigibilidade e Realização dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais na América Latina e o Caribe (1998) que recomenda ao Poder Judicial e ao Ministério Público para adotar todas as medidas que estão a seu alcance para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais que incluem o direito a um médio ambiente saudável. Pelas suas características, abriu-se um expediente separado de investigação sobre contaminação do arroio Canelón Chico (v. Seção I) onde além das provas existentes no juízo de responsabilidade civil se colecionaram outros elementos. Deve dizer-se que a Promotoria desinteressou-se desse processo e que finalmente se arquivou. Dez anos depois, o problema continua e ninguém aparece como responsável, nem o Estado tomou medidas. Agora a situação do arroio Canelón Chico é tema de debate na Imprensa, mais não nos tribunais.



26 de maio de 2013
1 Jornal “El Observador” del 2.4.2013, em “http://www.elobservador.com.uy/noticia/247223/contaminacion-en-el-canelon-chico-afecta-agua-potable/” (consultado o dia 25.5.2013); com respeito à informação televisiva, v. “http://www.teledoce.com/telemundo/nacionales/37414_Calidad-del-agua-en-el-Santa-Luc%C3%ADa” (consultado o dia 25.5.2013)
2 No Uruguai a ação por danos e prejuízos de direito civil comum prescreve aos quatro anos (art. 1332 do Código Civil uruguaio).
3 JOSSERAND Louis, “La Responsabilité envers soi-même”, 1934, p. 73.

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