POLUIÇÃO DAS ÁGUAS POTÁVEIS DO URUGUAI. A DEZ ANOS DE UMA SENTENÇA QUE PÔS
DE MANIFESTO O PROBLEMA, AINDA UMA REALIDADE PREOCUPANTE SEM
RESPONSÁVEIS
Dr.
Edgardo Ettlin
ÍNDICE: I. Introdução; II. O Caso (Sentença do 17 de Julho de
2003 do Juizado Letrado de Canelones de 2º Turno): a)
Os fatos; b) Resultados e Valoração da Prova; c) Atuação do
Ministério Público; d)
A sentença; III.
Comentário.
I.
Introdução
Tomou estado de alarme público
neste ano 2013 a contaminação do Rio Santa Lucía (que abastece de
água potável à cidade de Montevideo -capital do Uruguai- e a sua
área conurbana, mais do 50 % do Uruguai) e particularmente a alta
poluição verificada no Arroio Canelón Chico, um dos principais
afluentes do Rio Santa Lucía. Essa região é adjacente ao área
“Humedales (“Wetlands”) do Santa Lucía” que será
incorporada ao Sistema Nacional de Áreas Protegidas (Lei No. 17.283
e Decreto regulamentar Não. 349/005), e nela ainda habitam ao menos
10 espécies de anfíbios, 70 de árvores nativas e 123 de aves (o
30% das espécies de aves nativas do país) (1
).
Dez anos antes, uma decisão
judicial (sentença do Juizado Letrado de Primeira Instância de
Canelones de 2º Turno, que não foi apelada e entrou em autoridade
de coisa julgada) tinha denunciado esta situação mas ninguém se
fez eco da gravidade da situação. Atualmente todos estão se dando
conta que isto é um problema, embora ninguém se lembra deste
antecedente que já o assinalava, e que aliás estava avalizado por
relatórios periciais e científicos que estão no expediente.
No Uruguai a proteção judicial do
meio ambiente ou da natureza não está desenvolvida e a maioria dos
litígios são juízos de responsabilidade civil por danos e
prejuízos por contaminação ambiental. As ações que alguma
Promotoria do Ministério Público tentam em proteção dos
interesses coletivos ambientais fracassam usualmente por suas
omissões probatórias. Apesar de que não há impedimento para a
participação judicial da sociedade civil e dos grupos que
representam interesses difusos nestes temas, não existem ainda no
nosso país antecedentes importantes de demandas promovidas por estes
grupos em matéria de meio ambiente.
II.
O Caso (Sentença do 17 de Julho de 2003 do Juizado Letrado de
Canelones de 2º Turno)
a)
Os fatos
Um produtor rural proprietário de
un estabelecimento agropecuário demandou ao Frigorífico Canelones,
a ALUR S.A. (fabricante de arames e cabos elétricos) e à
Administração das Obras Sanitárias do Estado (O.S.E.) por danos e
prejuízos por responsabilidade ambiental. O campo do ator
(demandante) era atravessado pelo Arroio Canelón Chico, que
apresentava um péssimo estado sanitário por efluentes contaminantes
dos demandados, com presença de bacilos coliformes fora das
condições regulamentares, determinando uma água de Cor Negra e
cheiro nauseante. Aparte o curso tinha chumbo e quantidades anormais
de zinco e cobre. Queixava-se o demandante que a contaminação do
ribeiro tinha comprometido seu investimento (perdas em animais, e em
rendimentos de leitaria e agricultura, e que não poderia usar as
águas para rego) e que lhe tinha obrigado a fazer obras para evitar
que o gado não bebesse as águas do arroio e não morresse.
Reclamava-se uns U$S 219.795 por danos patrimoniais e morais.
O Frigorífico, a fábrica de arames
e cabos, e o Ente público encarregado da distribuição de águas
O.S.E. negaram as imputações da demanda, e alegaram que devia
provar-se que os prejuízos invocados tinham relação direta com a
atividade contaminante do ribeiro que a eles se queria imputar,
negando que vertessem contaminantes em níveis não permitidos.
Também afirmavam que haviam várias empresas e sujeitos que
contaminavam e enviavam refugos ao arroio, em forma pública ou
clandestina. Expressaram que o ator (demandante) contaminava o curso
da água também com sua atividade de gado e agrícola, e com o uso
de pesticidas e fertilizantes. Também propuseram a exceção de
prescrição de quatro años da ação, porque a suposta atividade de
contaminação que se recriminava vinha desde o passado e desde fazia
muitos anos.
b)
Resultados e Valoração da Prova
Foi demonstrado (avalizado por prova
pericial e relatórios técnicos ao respecto) que tanto a O.S.E.
(Ente encarregado do água potável; ou seja o próprio Estado)
quanto o Frigorífico Canelones (particular), enviavam efluentes ao
arroio Canelón Chico em quantidades de coliformes fecais com valores
não aceitáveis conforme aos parâmetros do Decreto do Poder
Executivo No. 253/979 (arts. 3º e 5º) na redação dada pelos arts.
1º. e 4º do Decreto No. 579/989 e o art. 2º do Decreto No.
195/991). As suas instalações para o tratamento das águas
residuais não eram as suficientes nem possuíam as condições
necessárias para a purificação das Águas em mau estado. No caso
de ALUR S.A., a sua contaminação por vertido de resíduos
inorgânicos principalmente Chumbo estava em valores aceitáveis ou
toleráveis para consumo de gado, mas não era adequada para padrões
dos humanos e não seria a água apta para o rego. Também se
demonstrou que o reclamante era também um contaminador, dizendo a
prova pericial que “A contaminação contribuída ao curso do
ribeiro por cada um dos envolvidos é muito importante, sendo maior a
de estabelecimento do Sr. C... [ator ou demandante]. Do
estabelecimento do Sr. C… saem águas tão contaminadas como as que
ingressam”. Provou-se ademais que existiam outros agentes, sujeitos
particulares, empresas e estabelecimentos industriais, de gado e
agrícolas, que arrojavam refugos tóxicos orgânicos e inorgânicos
(não individualizados em sua totalidade porque alguns eram
clandestinos) ao arroio Canelón Chico, ainda que não foram
demandados e portanto não intervieram nem foram envolvidos no
processo de responsabilidade civil.
Conquanto se tratava de um litígio
de responsabilidade civil (privado), a raiz deste caso o Ministério
Público pela Promotoria Letrada de Canelones tomou intervenção de
ofício por requerimento do Juizado atuante. Para não estorvar o
trâmite do juízo de ação por danos e prejuízos, separou-se desse
litígio uma investigação (que teria um alcance mais amplo e geral)
através de um expediente derivado de recolha de provas e de medidas
cautelares em instância preparatória civil (No. 109/2001/C de
Canelones 2º Turno).
d)
A sentença
A sentença rejeitou a demanda de
responsabilidade civil porque entendeu que o demandante era um
poluente do ribeiro Canelón Chico e portanto não tinha legitimação
para reclamar nada ao respeito de isso, além de que embora estava
provada a atividade contaminante dos demandados no arroio, a perícia
não determinou qual era a incidência sobre a propriedade do
reclamante (quem vertia em sua zona maiores contaminantes do que os
outros). De qualquer jeito, a decisão judicial recomendou à
Administração das Obras Sanitárias do Estado (O.S.E.), ALUR S.A. e
ao Frigorífico Canelones a que tomassem medidas para reduzir ou
abater os níveis de contaminação a padrões admitidos.
III.
Comentário
Ao dia 17 de julho de 2003 quando se
ditou a decisão em estudo, já existia a Declaração de Rio de
Janeiro sobre Médio Ambiente e Desenvolvimento, de junho de 1992. A
mesma não foi considerada no texto da sentença ainda que se aplicou
outras normas convergentes com certas limitações. No caso, não
está discutido que o incoante teve pleno acesso aos mecanismos de
justiça, conforme aos Princípios 10 “in fine” e 13 da
Declaração de Rio além dos princípios de acesso à Justiça da
Declaração de Buenos Aires sobre Participação dos Juízes
Ibero-americanos relativa à Informação, a Participação Pública
e o Acesso à Justiça em Matéria de Médio Ambiente de 2012. A
Jurisprudência uruguaia não legitima ao particular para a
reclamação dos interesses por danos difusos ao Médio Ambiente,
mais lhe permite reclamar civilmente pelos seus danos individuais
sofridos e para que se tomem medidas evitando mais danos futuros,
porque a contaminação ambiental é um ato lesivo e ilícito que
legitima à ação civil, e desde sempre foi imputador de
responsabilidade (arts. 47 da Constituição da República, 1319 e
1324 do Código Civil, 4º da Lei No. 16.466, 3º da Lei No. 17.283;
163 do Código de Águas, art. 11 do Protocolo de San Salvador sobre
Direitos Humanos Econômicos Sociais e Culturais, ratificado por Lei
uruguaia No. 16.519).
Entendeu-se que a ação por danos e
prejuízos em matéria de contaminação ambiental não prescreve
(2),
porque a atividade de Contaminação é um processo sistemático,
acumulativo e é de caráter contínuo, pelo que não o faz
determinável desde um “dies a quo” com certidão e não se
esgota num ato pontual, prolongando-se a ação poluente no tempo.
No caso se provou que não sómente
as indústrias particulares demandadas (além de outros agentes que
não participaram no processo) contaminavam, senão que o próprio
Ente Estatal que devia e deve cuidar as águas (o acesso ao água
potável e ao saneamento é um direito fundamental no Uruguai; art.
47 de nossa Constituição), era um principal agente contaminante do
arroio Canelón Chico porque ali verte as águas servidas da cidade
sem maior tratamento. Conquanto O.S.E., o Frigorífico Canelones e
ALUR S.A. possuíam certas instalações feitas para tratamento de
águas residuais, não eram as suficientes nem possuíam as condições
necessárias para a purificação das águas em mau estado.
Sem prejuízo de que estava provada
a atividade ilícita das empresas privadas e do ente estatal como
graves contaminadores da água (de um ribeiro afluente do rio de onde
se surte a população da Capital e conurbana de água potável),
entendeu-se que devia rejeitar-se a demanda do particular: a) porque
não estava provada a gravidade ou incidência pontual desta
contaminação dos codemandados (existiam outros agentes envolvidos
como participantes neste processo de contaminação que não foram
emplazados nem detectados, e os níveis de contaminação variavam
segundo lugares) sobre o curso de água que passava pelo campo do
reclamante; b) porque o próprio incoante era um grande contaminador
do arroio desde o seu campo (tirava às suas águas resíduos de
leiteria e matérias fecais de gado, pesticidas e plaguicidas) e isso
era um fato próprio que provocava danos em seu próprio campo aparte
de danos no ribeiro, no ponto que a sentença qualificou ao
demandante como “depredador”. A perícia evidenciou que todos os
envolvidos contaminavam, mas a contaminação que provocava o ator
era maior pelos níveis de valores que arrojava e porque nem sequer
tinha tratamento de seus resíduos. “Do Relatório surge que C…
joga igual ou mais quantidade de águas contaminadas do que aqueles a
quem demanda”; “…quem reclama é também um poluente do ribeiro
Canelón Chico… E pretende neste juízo uma intervenção da
Justiça, querendo esquecer o seu papel como agente contaminante do
curso de água mencionado”; “Antes de reclamar direitos e
responsabilidades alheias, primeiro deve cumprir-se os próprios
deveres e obrigações”. O fato da vítima, a sua atividade
poluidora, selou fatalmente o destino de sua demanda. Citando a
JOSSERAND a sentença estabelece que a atitude de incumpridor de quem
pretende fazer que os demais cumpram, enerva a própria pretensão
(3).
Esta conduta gravitou na rejeição de sua pretensão, no ponto que a
sentença citando a SAMANIEGO, diz-lhe:
"No consta que te falte nada,
lobo;
y tú, raposa, tú tienes el robo".
A Justiça recomendou (não
ordenou) ao Estado e às empresas demandadas a que cessassem os atos
de poluição das águas do arroio, mas como não estava imposta
nenhuma sanção ou astrição (não havia nenhuma obrigação senão
uma simples recomendação), não existiu uma instância de revisão,
de execução ou de avaliação sobre como se cumpriu. Embora que
julgava-se num processo privado, a Justiça tinha provocado a
intervenção ao Ministério Público justificando a necessidade
dessa participação porque “quando a Magistratura toma
conhecimento da existência de uma atividade que lesa valores ou bens
como sem dúvida o é o Médio Ambiente, que afeta aparte aos
Interesses Difusos, deve comunicá-lo de imediato…” e porque a
contaminação das águas é um comportamento que não só dana a
particulares senão que lesa a valores e bens da Comunidade Geral. E
ninguém mais competente para atuar em defesa e na representação
dos interesses públicos meio ambientais e da natureza que no caso
pudessem estar envolvidos como o Ministério Público. “Dita
atuação está justificada pela intervenção que lhe dá o
ordenamento jurídico…”. No Uruguai a gestão sustentável e
solidária com as gerações futuras dos recursos hídricos constitui
um assunto de interesse geral, e os usuários e a sociedade civil
devem participar em todas as instâncias (art. 47 lit. “b” da
Constituição nacional). No caso a Justiça provocou a participação
destes interesses envolvendo ao Ministério Público como
representante legitimado para defender os interesses da sociedade
civil que podiam estar em jogo no caso (no Uruguai, art. 42 do Código
Geral do Processo e art. 3º do Decreto-Lei Não. 15.365), o que em
nosso entender se encontra dentro do Princípio 10 da Declaração de
Rio, do Princípio de Participação Pública em matéria de médio
ambiente da Declaração de Buenos Aires, e o art. IV.33 da
Declaração de Quito a respeito da Exigibilidade e Realização dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais na América Latina e o
Caribe (1998) que recomenda ao Poder Judicial e ao Ministério
Público para adotar todas as medidas que estão a seu alcance para a
realização dos direitos econômicos, sociais e culturais que
incluem o direito a um médio ambiente saudável. Pelas suas
características, abriu-se um expediente separado de investigação
sobre contaminação do arroio Canelón Chico (v. Seção I) onde
além das provas existentes no juízo de responsabilidade civil se
colecionaram outros elementos. Deve dizer-se que a Promotoria
desinteressou-se desse processo e que finalmente se arquivou. Dez
anos depois, o problema continua e ninguém aparece como responsável,
nem o Estado tomou medidas. Agora a situação do arroio Canelón
Chico é tema de debate na Imprensa, mais não nos tribunais.
26
de maio de 2013
1
Jornal “El Observador” del 2.4.2013, em
“http://www.elobservador.com.uy/noticia/247223/contaminacion-en-el-canelon-chico-afecta-agua-potable/”
(consultado o dia 25.5.2013); com respeito à informação
televisiva, v.
“http://www.teledoce.com/telemundo/nacionales/37414_Calidad-del-agua-en-el-Santa-Luc%C3%ADa”
(consultado o dia 25.5.2013)
2
No Uruguai a ação por danos e prejuízos de direito civil comum
prescreve aos quatro anos (art. 1332 do Código Civil uruguaio).
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